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CUTI. Negroesia. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2007.136 p.

 

TORPEDO


irmão, quantos minutos por dia
a tua identidade negra toma sol
nesta prisão de segurança máxima?



e o racismo em lata
quantas vezes por dia é servido a ela
como hóstia?



irmão, tua identidade negra tem direito
na solitária
a alguma assistência médica?



ouvi rumores de que ela teve febre alta
na última semana
e espasmos
– uma quase overdose de brancura –
e fiquei preocupado.



irmão, diz à tua identidade negra
que eu lhe mando um celular
para comunicar seus gemidos
e seguem também
os melhores votos de pleno restabelecimento
e de muita paciência
para suportar tão prolongada pena
de reclusão.
diz ainda que continuamos lutando
contra os projetos de lei
que instauram a pena de morte racial
e que ela não tema
ser a primeira no corredor
da injeção letal.



irmão, sem querer te forçar a nada
quando puderes
permite à tua identidade negra
respirar, por entre as mínimas grades
dessa porta de aço
um pouco de ar fresco.



sei que a cela é monitorada
24 horas por dia.
contudo, diz a ela
que alguns exercícios devem ser feitos
para que não perca completamente
a ginga
depois de cada nova sessão de tortura.



irmão, espero que esta mensagem
alcance as tuas mãos.
o carcereiro que eu subornei para te levar o presente
me pareceu honesto
e com algumas sardas de solidariedade.

irmão, sei que é difícil sobreviver
neste silencioso inferno
por isso toma cuidado
com a técnica de se fingir de morto
porque muitos abusaram
e entraram em coma.



fica esperto!
e não esquece o dia da rebelião
quando a ilusão deve ir pelos ares.



um grande abraço
deste teu irmão de presídio

assinado:
zumbi dos palmares.

 


CULTURA NEGRA


ariânico afago
na suposta acocorada
afroinfância literária



nossa cor sim
e não
reelabora elegbara



orixás não tomam chás de academias
tampouco em mídia sui-seda
cedem



poema de negrura exposta
tece vida
na resposta

abrindo a porta enferrujada de silêncio

explodem
coices
o boi e o bode
entre folclóricas nuvens e teses
de negrófobas carícias

alvos a-tingidos desesperam
em busca de tambores
ritos
puros mitos
em águas paradas
de poemas pardos
que lhes salvem da chuva de negrizo.


PARA OUVIR E ENTENDER “ESTRELA”


se o papai-noel
não trouxer boneca preta
neste natal
meta-lhe o pé no saco!

QUEBRANTO


às vezes sou o policial que me suspeito
me peço documentos
e mesmo de posse deles
me prendo
e me dou porrada



às vezes sou o porteiro
não me deixando entrar em  mim  mesmo
a não ser
pela porta de serviço



às vezes sou o meu próprio delito
o corpo de jurados
a punição que vem com o veredicto



às vezes sou o amor que me viro o rosto
o quebranto
o encosto
a solidão primitiva
que me envolvo com o vazio



às vezes as migalhas do que sonhei e não comi
outras o bem-te-vi com olhos vidrados
trinando tristezas



um dia fui abolição que me lancei de supetão no
       espanto
depois um imperador deposto
a república de conchavos no coração
e em seguida uma constituição
que me promulgo a cada instante



também a violência dum impulso
que me ponho do avesso
com acessos de cal e gesso
chego a ser



às vezes faço questão de não me ver
e entupido com a visão deles
sinto-me a miséria concebida como um eterno
         começo



fecho-me o cerco
sendo o gesto que me nego
a pinga que me bebo e me embebedo
o dedo que me aponto
e denuncio
o ponto em que me entrego.



às vezes!...

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