CUTI. Flash crioulo sobre o sangue e o sonho. Belo Horizonte : Mazza Edições, 1987 (poemas). 60p.
AVENIDA
há uma gosma espessa
baba de louco
nódoa de medo
pus de ferida
uma avenida
no meio do nosso abraço
tua solidariedade minha
não passa
pede passagem
e se atola onde a pisoteiam
e chafurdam
os porcos do passado
que não é o nosso
há uma gosma espessa
baba burguesa
nódoa de medo
mágoa nutrida
imensa avenida
no meio do nosso abraço.
VEM CANTANDO
noite e chuva
apresso-me nos passos
um medo branco prepara o bote
na minha sombra
pés encharcados
atolo-me na lembrança dos alagados
as sandálias soltam gemidos que
recordam
choro de crianças nos casebres
que se despencam
de morros
noite e chuva
meu guarda-chuva ameaça guardar-me da vida
dos outros
um impulso no sangue me joga tonto na lama e dou
de cara com bêbados e
prostitutas
umedeço-me e esfrio no pavor
vivido por meu avô
e continuo
caminho escutando sussurros e roncos gadanhando
a noite
enquanto nuvens choram e suam sobre a cidade
noite e chuva
o vento passa com suas mágoas
em busca de esperança no ventre da humanidade
minha história vem molhada pela rua
cambaleia de sono
tirita de frio
e me tateia na teia chuvosa do escuro
vem cantando cantigas em nagô
entrecortadas de espirros em quimbundo
tem colares de contas que encerram necessidade
e anseio
chacoalhando num ritmo o futuro
caminhadas do meu povo em suas tranças no cabelo
e uma estrela de alegria insistindo no sorriso
doce riso de gerúndio
minha história vem molhada e me procura...
com as dores tão antigas
titubeia
me incedeia num abraço
o tempo descontraído
escancarado o espaço
DA AGONIA
quilombos queimados...
hoje se dança uma alegria tonta
sobre a areia movediça da agonia
cachaça e mentira
enlameiam o terreiro
para o lucro alheio
e o samba bamboleia
meio bêbado
mulatas no picadeiro
showrando
um eterno fevereiro
pura necessidade: nossos ancestrais
vão acendendo seus olhos
nos porões de nossos poros.