CUTI. Quem tem medo da palavra negro. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2012. 24p.
(Texto publicado inicialmente na Revista Matriz: uma revista de arte negra, editada em novembro de 2010 pelo Grupo Caixa Preta, de Porto Alegre, RS. Texto com correções.)
Em uma das cenas do musical Bixiga que narra a história do bairro paulistano, cuja propriedade dos imóveis é majoritariamente de italianos e de descendentes desses, uma personagem diz a outra que agora não é mais “crioulo” que se fala, mas “afrosforescente”. Um toque de riso. É corrigida pela vizinha que pronuncia “afrodescendente”. As duas expressões não pertencem à dinâmica reivindicatória e histórica do Movimento Negro que moveu o país no sentido da necessidade de assumirmos a nossa diversidade racial e cultural. Uma é muito antiga (crioulo) a outra, historicamente recente. Por que, então a palavra “negro” vem sendo banida tanto por racistas quanto por pessoas que advogam as africanidades no Brasil?
A humanidade nasceu na África. Então todos nós, seres humanos, somos afro-descendentes, até a personagem da peça Bixiga, descendente de italianos. E as atrizes. E afro-brasileiro, portanto, somos todos os brasileiros. Mas, isso do ponto de vista científico e não social. Nesse particular, até raça – que não existe para a ciência – desempenha um papel fundamental. Mas, tais palavras iniciadas pelo prefixo “afro” não representam em sua semântica a pessoa humana como ocorre com a palavra “negro”. Esta diz de pronto sobre o fenótipo: pele escura, cabelo crespo, nariz largo e lábios carnudos e história social. Variações nesses itens são infinitas. “Afro” não necessariamente incorpora tal fenótipo, sobre o qual incide a insânia branca do racismo. Branca porque é dos brancos. Um “afro” pode ser branco. Há milhões deles. No “afro”, o fenótipo negro se dilui. É por isso que o jogo semântico-ideológico tem se estabelecido e o sutil combate à palavra “negro” vem se operando, pois ela não encobre o racismo, além disso lembra reivindicação antirracista. Tais reivindicações contestam a base sobre a qual se erige o racismo no mundo: a ilusão de superioridade congênita dos povos despigmentados, aqueles que descendem dos grupos que, há milênios, migraram do interior da África para as regiões mais frias do planeta. O sol que nos garante a vida é também, em seus excessos, implacável. Os humanos têm melanina na pele por proteção, nariz largo e cabelos crespos também, para viver em zonas tropicais. A humanidade originou-se em zona tropical. Daí a pigmentação. A dispersão e os múltiplos cruzamentos corresponderam às alterações físicas diversas que se vê hoje no mundo. No mais são as conquistas armadas – a letalidade das armas também são resultado de necessidade de sobrevivência em ambiente de natureza mais hostil – de uns povos sobre outros e a necessidade de se justificar tais vitórias sanguinárias que criaram as ilusões de superioridade congênita. Um assaltante que invade a sua casa com armas possantes, mata familiares seus, estupra, transmite doença, rouba seus pertencentes, faz você trabalhar para ele, obedecer às suas ordens, esse assaltante pode, se ele for fisicamente diferente de você, atribuir a essas diferenças a superioridade em relação a você, acreditar nisso e fazer até você crer nos argumentos dele, e ele pode também escrever livros e mais livros, produzir filmes e mais filmes, e ensinar para gerações e gerações, por vários meios, que você é inferior e ele é superior a você por conta das diferenças fenotípicas. Racismo é isso. Mas, com consequências inimagináveis de violência, tortura, morte e perversa exclusão. Isso porque racismo implica em crença, dominação e ódio. E existe porque existe gente que acredita nele e desenvolve dentro de si os preconceitos (ideias, sentimentos e emoções) contra o diferente e acabam praticando a discriminação (impedimento de acesso ao emprego, humilhação, desprezo, violência etc) contra tais diferentes. Assim como só existe droga porque tem gente consumindo e vendendo droga e gente que faz de conta que não vê o problema, assim só existe racismo porque tem gente que pratica a discriminação racial e gente que é conivente com essa prática porque acredita que os povos ladrões de outros povos são congenitamente superiores. E porque há os praticantes de racismo e aqueles que fazem de conta que não têm nada com isso? Por que a ilusão de superioridade racial cria vantagens práticas para tais praticantes e tais coniventes? Um chefe de departamento pessoal ou um empregador qualquer que discrimina negros favorece a quem? Aos brancos ou aos mais despigmentados. Porque, aqui no Brasil, o racismo se pauta, além dos traços já apontados, pela gradação da melanina na pele. Por isso na TV, por exemplo, só quase tem branco. Os coniventes sabem disso. Por essa razão, silenciam, como a professora que vê e ouve um aluno discriminando outro e não age em defesa do discriminado, fazendo de conta que não é com ela. E é com ela, sim! Educar implica preparar para uma convivência harmônica. A prática do racismo desagrega a sociedade e impede seu potencial humano de se manifestar plenamente. E o Brasil precisa de coesão do seu povo para ter equilíbrio social e prosperidade sustentável. Entretanto, no cotidiano competitivo, quem está preocupado com isso? A prática do racismo usa como principal arma a humilhação dos negros. Desde um escrito maldoso em porta de banheiro até a violência de um policial ou de um bandido que pode levar à morte um inocente ou mesmo um culpado sem julgamento, o racismo atua como crença de superioridade grupal. É por que muitas pessoas acreditam nele que se acham no direito de humilhar e violentar os outros. Uma pessoa racista é uma pessoa complexada, ou seja, alguém com doença psíquica. Se um indivíduo diz que ele é o Super Homem, está querendo dizer que tem poder mais que os outros. O sentimento de superioridade congênita, por que se tem a pele e olhos claros, nariz estreito e cabelo liso, é uma doença psíquica. Como é uma doença psíquica que atinge muitas pessoas, torna-se uma patologia social. Para esse grupo – que se constitui o grupo hegemônico do ponto de vista da economia e da política – tal patologia acaba sendo incluída dentro dos parâmetros de normalidade das relações raciais. Então, todas as formas de violência advindas dessa doença são invisibilizadas, tornam-se nada. Ou seja, é como se não existissem.
A discriminação racista no Brasil não é de origem. Até chegou a ser, quando se imaginava que o africano tinha sangue impuro. Mas essa ideia ficou lá na época da colônia, porém não deixou de lançar suas ramificações no presente.
Um branco racista e estrangeiro que chega ao Brasil será melhor tratado socialmente do que um negro de qualquer nacionalidade. Aliás, as figuras africanas brancas ou mulatas têm tido boa acolhida por aqui, diferentemente dos africanos negros. Isso porque a cor da pele escura é simbologia historicamente construída. Contudo, na verdade, ninguém é discriminado por ser negro, mas porque há milhões de brancos que sofrem daquela patologia de “Eu sou o Super Homem!”. Um louco deve ser internado para se submeter a tratamento. No caso das doenças coletivas, sobretudo de um grupo hegemônico, quem procura curá-las é que é considerado o doente. Há, portanto, uma inversão.
Nós, seres humanos, nos iludimos por várias razões quanto à auto-imagem que cada um produz, pois quase sempre é uma idealização. Um branco ou mestiço racista, em face de um negro, busca uma compensação para qualquer de suas deficiências. Ancorar-se na ilusão racista é também um ato de cobrir deficiências ou fragilidades pessoais. Mas, não é só. A razão principal é ter vantagens em relação aos negros. Sempre que temos necessidade de humilhar alguém queremos gritar que somos melhor que a pessoa humilhada e ver essa falácia reconhecida socialmente. Um racista faz isso se baseando em uma convicção. Em face de um negro, ele, branco ou mestiço racista, quer ser Super Homem! Quando desqualificar o outro se torna difícil, o indivíduo racista amarga um desequilíbrio interno sem solução que não seja arriscar-se a uma agressão verbal ou física que pode lhe custar caro. Quando você agride alguém está correndo o risco de ser agredido. A frase atribuída a Luís Gama – “Todo escravo que mata o seu senhor comete uma ato de legítima defesa” –, se traduzida para o contexto racista da vida cotidiana brasileira atual, implica na legitimação da lei milenar do “olho por olho, dente por dente”. Mas, sabemos: a vingança é sempre desproporcional, não se contenta com pouco. Quem discrimina há de ficar desconfiado de que a vingança está a caminho, mesmo que a água do lago esteja parada. Esse é o lado do assombro: para o racista, todo negro significa uma iminente possibilidade de revide daquilo que sofreu ou sofre, ou, ainda, do que poderia sofrer. Há, portanto, no inconsciente coletivo brasileiro um medo branco que é preciso, a todo momento, refrescar para que ele, supostamente, não recrudesça em mais prática de racismo. Na época colonial, os escravizadores usavam a técnica da violência preventiva. Para lermos o presente das relações raciais no Brasil, temos de considerar o significado daquilo hoje. A prática discriminatória é uma intimidação que funciona no dia a dia como uma atitude preventiva dos brancos racistas contra o que os assusta. Um negro com poder, para a consciência e, sobretudo, inconsciência racista, só pode significar a prática da vingança.
E a palavra “negro” nisso tudo? Por que razão ela vem sendo deixada de lado, em particular na instância instituída do saber: a universidade? Por que vários segmentos organizados da população negra também têm aderido a essa mudança, optando pelo prefixo “afro”, enquanto outros segmentos fazem questão de manter a palavra “negro” e promovê-la?
No ano 1978 foi lançado nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo o Movimento Negro Unificado contra a Discriminação Racial. Por que seus organizadores não deram o nome de Movimento Afro-...? Não se trata de mera escolha gratuita de palavra. As palavras trazem conteúdo, têm suas histórias no idioma, seus significados e suas morfologias não são para sempre. É por isso que elas são escolhidas ou rejeitadas. Naquele momento (e ainda hoje) foi escolhida a palavra “negro” porque ela é a única do léxico que, ao ser empregada para caracterizar organização humana, não isenta o racismo. Desde a antiguidade, através de suas correspondências em outros idiomas, vem acumulando história. Usada em diversos contextos para demarcar significados negativos ela foi também utilizada pelo racismo para caracterizar a suposta inferioridade dos africanos de pele escura. Os povos que foram ficando mais claros durante o longo período histórico da humanidade guerrearam contra os mais escuros. É dessa passagem que remonta esse uso da cor para estigmatizar.
Focalizando o Brasil, último país a abolir a escravização (esse dado é importante!), vamos encontrar os próprios negros assumindo a palavra no seu aspecto positivo, para nomear o seu movimento de reivindicação de plena cidadania. Já em 1930, em São Paulo, um movimento que se tornou partido político por curta duração, chamou-se Frente Negra Brasileira. E assim outras tantas organizações de antes e posteriores traziam em seus nomes a palavra “negro”. Na década de 40, em Paris, estudantes negros das Antilhas e da África haviam fundado o movimento da Negritude. Na década de 60, a luta pelos direitos civis nos Estados Unidos empregou a palavra “black” cuja versão correta, no contexto social brasileiro, é “negro” e não preto como querem alguns. Ou seja, este assumir a palavra “negro” pelos próprios negros não é recente, nem tampouco local.
Tendo a palavra em foco servido para ofender, no momento em que o ofendido assume-a dizendo “eu sou negro”, o que ocorre é que ele dá a ela um outro significado, ele positiva o que era negativo. Aqui acontece algo estranho para quem ofende. Se a palavra perde o poder de ofender, ele, o ofensor, perde um instrumento importante na prática (discriminação) e na manutenção psíquica (o preconceito) do racismo. Por outro lado, a palavra “negro” não o deixa em paz, por trazer em sua semântica a histórica opressão escravista, colonialista, e desafia a convicção em que se baseia a doença psíquica do racismo. Qualquer circunstância de inferioridade ou igualdade a um negro desequilibra o branco racista, impelindo-o a comportamentos agressivos que podem, de alguma maneira, redundar em punição, inclusive a vingativa.
É preciso levar em conta que ideologia não é um organismo de ideias paralisadas. Não. É móvel o tempo todo, pois precisa rearticular-se. A ideologia racista brasileira tem dois componentes básicos: o branqueamento e a autonegação de si mesma. No primeiro caso, trata-se do ideário de intelectuais brancos, desde o século XIX até o século XX, promovendo a hipótese de que o país ia se tornar um país de população exclusivamente branca no futuro, ou seja, com a eliminação física do negro por meio da miscigenação. Por isso eles elegeram a mulata como símbolo de passagem para a mulher ideal, a branca, e chegaram a pronunciar em alto e bom som que o Brasil era um país mestiço. Alguns ainda vivem arrotando esse argumento e não o de que o país é de todos, independente da coloração de seus traços físicos. Quando dizem “mestiço”, entretanto, estão querendo dizer “não negro” ou “quase branco”. A ideologia tem disso, não explicita, deixa as suas verdadeiras intenções encobertas por palavras outras. A ideologia racista brasileira adora um eufemismo, aquela figura de linguagem que disfarça, que substitui palavras como “ladrão” por expressões como “amigo do alheio” e assim por diante. Isso porque o componente operacional do racismo à brasileira é a hipocrisia. Com a constatação de que aquela fantasia não deu certo, pois, hoje a população de negros e pardos (mulatos) já ultrapassou os 50% de brasileiros, a ideologia já se rearticulou antes, dizendo em meio à apologia da mestiçagem: os negros não são inferiores, apenas as culturas africanas estavam em estágio inferior, por isso seus ascendentes foram escravizados. Daí, então, começou a mudança que vem sendo explorada até hoje: não se trata de racismo, mas, sim de cultura. Esses arranjos que implicam em livros, artigos e outras formas de produção cultural, são arranjos complexos que atuam no convencimento das pessoas ao longo de décadas de produção teórica e ensino das novas gerações. Há vários livros responsáveis por isso, livros de autores comemorados, alguns cujas obras até tem sido publicadas em quadrinhos. Podia citá-los, mas não vou fazer, de propósito. Já são por demais promovidos.
Se, segundo a ideologia racista, é a cultura do negro que é inferior, muita gente tem se voltado a ela para tentar valorizá-la, de forma que ela deixe de ser inferior. Por isso, pensam: se a palavra “negro” foi utilizada para desqualificar, para inferiorizar, vamos substituí-la, pois é à África, às origens que se deve voltar os olhos, para de onde os negros brasileiros vieram. Esse é o ponto de vista racista. Não nos enganemos. Cultura aqui significa não se referir a racismo, muito menos combatê-lo. Muito pelo contrário, significa esvaziar de qualquer conteúdo crítico as manifestações culturais de origem africana. As atenções serão, dessa maneira, voltadas para os aspectos de autenticidade com a matriz de origem, características estilísticas, preocupações formais etc. Para isso, lançou-se mão, desde o início do século passado do prefixo “afro”. Hoje, os africanos que por aqui aportam principalmente os das camadas dirigentes dos países daquele continente agradecem por este reatar o elo com a origem e de forma amistosa. Só que isso tudo deve ser revestido de um silêncio quanto ao racismo e sua violência histórica que está na base econômica e social do Brasil. Muita gente hoje, com as expressões formadas a partir do prefixo “afro”, trabalha “confortavelmente”, sem necessitar de confronto com a ideologia racista, negando-lhe a existência. Pronto, chegamos ao segundo aspecto básico do racismo: a invisibilidade de si mesmo. Como sua prática implica o mascaramento, o racismo mantém a sua existência intocável. O que se diz inexistente funciona como um fantasma. Quando se tenta detê-lo ele desaparece. As pessoas racistas são muito hábeis em sua prática. Sabem de antemão que não se podem deixar denunciar. Dissimular é a prática transmitida de pais para filhos há séculos. Os brancos entre si chamam os negros de pretos, riem deles, mas, se houver um negro entre eles, então disfarçam, procuram manter a hipocrisia alerta e, se o negro reagir a qualquer deslize deles, ele, negro, será acusado de racista ou complexado. É o jogo. No mais, “foi brincadeira”. Assim, não empregar socialmente a palavra “negro” é impedir a transformação do seu significado negativo para positivo, é abortar o processo iniciado pelos próprios negros na busca de sua cidadania. Se, por exemplo, o próprio negro conseguiu o “Dia Nacional da Consciência Negra”, os brancos precisam – auxiliados por outros não-brancos – alterar isso, pois “consciência negra” não aponta para “cultura” no sentido ingênuo, e, sim, para cultura no sentido crítico de luta contra o racismo, por conseguinte, contra o privilégio que ele garante para os brancos e para os menos escuros. Os argumentos contra a palavra aliada à consciência são os mais deslavados. O principal deles é que “consciência não tem cor”. É de se perguntar, a esse respeito, sobre a paz. Se também não tem, porque aparece sempre como branca? Um outro argumento é o de que a palavra “negro” estaria ligada a um essencialismo, como se não fosse o racismo o responsável por essencializar o branco enquanto “Super Homem”. A palavra “negro”, ao traduzir o humano, existencializa-o, demonstra que os indivíduos e grupos se fazem na prática social. Enfim, o que existe nesse aparente jogo semântico é a vontade e o empenho para se manter as coisas como elas estão nas relações raciais no Brasil: branco discriminando como se fosse normal, negro anestesiado, com medo de reagir, e mestiço fazendo o jogo da omissão, em busca das vantagens de se sentir branco.
Na luta semântica entre a palavra “negro” e aquelas associadas ao prefixo “afro”, a arte desempenha um papel fundamental. Se a arte brasileira, majoritariamente, faz ouvido de mercador para o racismo e suas consequências (tomando-o como brincadeira, fatos sem relevância para a vida das pessoas), tanto na música, quanto na literatura, nas artes cênicas e nas artes plásticas, isso não é unanimidade. Se, por exemplo, o maior fenômeno cinematográfico atual do país – o filme Tropa de Elite 2 –, para o fenômeno da matança de negros no Rio de Janeiro, apenas sussurra a expressão “limpeza étnica”, na boca de um dos personagens em um discurso desqualificado pelo herói-narrador, podemos imaginar o restante da produção na área cinematográfica e nas demais. Mas, há cineastas negros, há um cinema, assim como há uma literatura, um teatro, uma arte negro-brasileira, enfim. A produção daí gerada vem sendo também carimbada de “afro” por estudiosos. Não é preciso dizer que os pais desses estudos, iniciados nas primeiras décadas do século XX, foram brancos e, uns tantos, racistas. Hoje em dia aquele carimbo está sendo promovido também por várias pessoas de boa vontade, dentre as quais, aqueles que têm horror a tocar no assunto racismo. A intenção de não empregar a palavra “negro”, para caracterizar tal produção, foi proposital e ainda é. Mas, nem tudo nessa atitude é assim. Negros e mestiços que desejam que o racismo desapareça por um passe de mágica também utilizam o “afro”. Assim, todas as consequências funestas do racismo podem ser encobertas, ou melhor, não lembradas e, portanto, não sofridas ou ressofridas. Lembrar o sofrimento dói, lembrar que ele pode nos surpreender na próxima esquina dói mais ainda. Daí que tantos negros neguem, eles mesmos, que o racismo existe e os atinge. Acontece que, com essa falsa consciência, ficam vulneráveis. Quando acontece, são pegos desprevenidos e, portanto, terão sempre de estar elaborando um novo esforço psíquico de auto-enganação: passar ferro quente na própria consciência para alisá-la. Nesse ponto mora a grande responsabilidade da arte negro-brasileira: não permitir que o custo psíquico dessa auto-enganação prossiga sendo tão alto. A constituição do imaginário de uma população é feita especialmente pela produção cultural. Nesta, as formas mais eficazes encontram-se no campo das artes, porque manipulam não apenas os aspectos racionais das relações humanas, mas também os emocionais. O imaginário racista da população brasileira vem sendo alimentado há séculos por uma arte que, no tocante às relações interraciais, é alienada. Ela é a responsável por não enfrentar o fantasma do racismo, que de fantasma só tem a técnica do disfarce, pois é muito prático. Há toda uma produção que apresenta o Brasil como um país de pura harmonia racial. Nenhum estranhamento, como se estivéssemos em um país de pessoas cuja diferença fenotípica nada representasse. É a técnica do silêncio.
No campo das artes negro-brasileiras a recepção branco-racista exerce seu papel de coerção ideológica. É como se se pronunciasse dessa maneira: “Se falar de racismo, eu não te aceito.” Muitos produtores negros acabam se intimidando com essa ameaça implícita nas secretarias de cultura e outros organismos oficiais, nas empresas de fomento e em outras instâncias de promoção das artes, como a mídia. Aí, então, toca ensinar dança afro para filho de madame! Sem nenhuma problematização da realidade problemática. Cultura! Carnavalização! Ingenuidade. Silêncio. Portanto, a relação entre o nível de intimidação dos negros que produzem arte no Brasil e o nível de seu enfrentamento é que determina não apenas o seu volume, mas também a sua qualidade. Para se produzir bem, é preciso produzir bastante, profunda e progressivamente. O entusiasmo desses produtores está intimamente ligado à articulação entre os limites que lhes foram e são impostos pela intimidação racista e sua capacidade de resistência. Às vezes, um simples funcionário racista de um órgão público consegue engavetar projetos importantes de arte negro-brasileira, gerando problemas que objetivam ocasionar a perda de entusiasmo. Há uma luta, sim. Um funcionário desse naipe veste-se de fantasma (porque se manifesta hipocritamente), mas não é um fantasma. Assim, outros tantos. A capacidade de resistência pressupõe um discurso de resistência que, na conquista do espaço devido, ouse tematizar o racismo enquanto conflito humano consequente, pois a arte negro-brasileira, quando atua no imaginário geral da população brasileira, liberta não apenas o negro das garras do racismo silencioso, mas também o branco e o mestiço naquilo que têm ou ainda lhes resta de se imaginarem “Super Homem”. São as pesquisas sobre a historicidade do racismo associadas às pesquisas das matrizes africanas é que constituem o estofo de uma arte negro-brasileira vigorosa. A fragilidade de grupos e artistas solitários está em compactuar com o chamado “racismo cordial”, pois a maioria aprofunda-se na pesquisa das formas culturais de origem africana e descuidam (em geral por medo) completamente da pesquisa relacionada ao racismo. As produções acabam derivando para o folclore, para a ingenuidade sem densidade humana. Esta densidade se alcança pela valorização do conflito, por mais “intestinal” que ele seja. Ao empregarem a estratégia de silenciar o conflito para serem melhor aceitos ou menos rejeitados, não atingem o aprofundamento humano de suas criações, sobretudo por não aproveitarem suas próprias vidas e a de outros negros enquanto inspiração criadora. A existência (e não a essência) da população negra, na sua relação com a população mestiça e branca no contexto mundo, é o material primordial da arte e de uma nova estética, para que essa última não seja uma mera imitação de modismos (inclusive tecnológicos) de uma arte brasileira alienada. O samba até hoje é o exemplo máximo de arte alienada no contexto da questão racial. A maior parte de sua produção faz vista grossa ao racismo, compactua com o silêncio imposto pela ideologia. Embora seja produzida majoritariamente por negros e negro-mestiços, é subserviente em face da ideologia racista: cala-se ou tergiversa. Raras são as exceções. E ainda bem que elas existem para demonstrar que o futuro já nasceu. O símbolo Zumbi não está presente por acaso, mesmo tendo sido soterrado durante séculos por uma historiografia perversa. Infelizmente, a noção de cultura ingênua foi tão calcada no imaginário artístico nacional que artistas ficam sempre hesitantes se seu produto pode desagradar o público se tocar no assunto relativo às relações interraciais. Há, contudo, uma sedução em arte que transpõe o agrado e se impõe. Ela só é atingida com o trabalho aprofundado no campo das vivências humanas e no tocante à beleza. Não apenas nesse último item. O racismo tem história e complexidade humana. Se não for considerado sob este prisma, torna-se guirlanda, enfeitezinho só para dizer que o assunto não foi esquecido ou então surge como gemidos críticos. Outra coisa: racismo não é só coisa de negro. O branco está envolvido até o mais recôndito da alma (para os que acreditam em alma; podemos dizer subjetividade, para os descrentes). Só que não admite, em sua maioria. Relações humanas são complexas ou não são. Toda aparência é transparente para os olhos do artista capaz de desvendar onde se alojam os medos, os desejos, as emoções, onde a humanidade esconde seus segredos.
Estamos hoje diante da questão do que é e do que não é importante sabermos sobre o Brasil. Camadas submersas da nossa realidade estão prenhes de revelações. O conhecimento produzido sobre as questões atinentes às relações raciais já é considerável. Entretanto, a formação escolar e a acadêmica dos produtores de arte ainda não contemplam esse saber, deixando seus formandos quase sempre sem o instrumento necessário para abordar as relações interraciais, no que elas têm de humano e profundo. Tergiversar a respeito do assunto é a lição que a escola nos ensina. Há um vazio promovido pela eurocentralização do conteúdo do saber a ser ministrado, além da promoção da hipocrisia nas relações raciais, uma necessidade quase que doentia de se demonstrar o domínio da matriz europeia, de se assujeitar a ela como garantia de aprovação. É a expectativa de êxito que foi instituída que nos leva a isso. Há, no tocante aos valores culturais hegemônicos, muita coisa que precisa ser superada. Aí, as noções racistas acerca da realidade nacional devem ser demolidas. Não é fácil. Algumas estão cristalizadas em forma de consenso e mesmo crença. Quem enfrenta crença enfrenta encrenca. A arte é a melhor maneira de se caçar fantasmas, ideal para colocá-los a nu de seus disfarces.
Afinal, quem tem medo da palavra “negro”? A expressão “medo” pressupõe que tenhamos uma dada prevenção contra o que pode ocasioná-lo. Assim, evitamos situações que nos podem meter medo. As palavras também, pelo tanto que são carregadas de significados, podem nos meter medo. Há, ainda hoje, muitas pessoas que evitam certas palavras como se, ao pronunciá-las, o malefício fosse atraído. É provável que a palavra “negro”, para quem é racista ou sua vítima conformada, deva ter aquele sentido de tabu: se falar atrai. No caso, atrai a vingança do negro contra o branco ou a prática do racismo do branco e mestiço contra o negro. Assim, o silenciar a palavra seria uma medida de precaução. É evidente que essa maneira de sentir e pensar não se coaduna com nenhuma visão séria de como solucionar problemas sociais. Qualquer proposta sensata ancora-se em medidas de tirar a sujeira de debaixo do tapete e não colocá-la ou lá mantê-la. Esconder situações de opressão é preservar tais situações. Portanto, se a palavra lembra e faz lembrar questões que a sociedade brasileira precisa superar, então é ela, a palavra “negro”, que precisamos empregar. Se ela amedronta, pela sua semântica crispada, ela, pela sua verdade existencial, apazigua. Pois, se não é para superar o racismo em seu amplo espectro, para que a Lei 10.639/2003, o Estatuto da Igualdade Racial, artigos na constituição e outras leis que proíbem a discriminação em elevadores e outros espaços? E mais, para que Movimento Negro, incluindo inúmeras entidades militantes, ONGs, grupos e outras formas de atuação da população negro-brasileira? Pode-se imaginar ser possível para um branco racista pronunciar a palavra “negro” positivamente? Não. Mas aquelas palavras feitas com o sufixo “afro” para ele podem ter o significado de cultura ingênua, sem conotação crítica alguma, ou mesmo ter o significado das danças e cantorias que deleitavam senhores e sinhás brancas no tempo da escravização, feitas para o consumo, com garantia de nenhuma indigestão psíquica. Em outras palavras, mero carnaval.
Se o Brasil se concebe branco e mestiço, precisa se conceber negro. Não o fazendo, o país vai continuar rejeitando a si mesmo. O negro brasileiro não é africano, assim como os brancos daqui não são europeus, por mais que uma pequena parcela lute pela dupla cidadania e tradições daquele continente sejam preservadas. O branco aqui está doentiamente identificado, pois só se identifica consigo mesmo. O negro luta para identificar-se consigo mesmo, pois está identificado apenas com o branco, assim como o mestiço. No Brasil, a identidade só faz sentido se for consigo mesmo e com o outro, não enquanto subserviência a padrões estéticos ou identificação histórica, mas empaticamente. O racismo vem postergando isso. É por essa razão que brasileiro em geral não gosta de ser brasileiro. O uso da palavra “negro” positivada, pelo influxo do Movimento Negro, atua no sentido de promover a superação do racismo e reforçar a identidade vilipendiada secularmente. Abandoná-la é solapar as conquistas já feitas nesse sentido. Não há identidade negra possível sem o combate progressivo ao racismo. A ideia de “cultura” isenta de vida e, portanto, de conflito, só reforça a hipocrisia instaurada como norma. Não há identidade brasileira sem identidades negra, índia e mestiças livres dos padrões hegemônicos brancos.
Semelhante ao crucifixo diante da possibilidade de se deparar com o demônio, a palavra “negro” positivada cumpre a função de exorcizar o racismo convicto, o enrustido e a anestesia de suas vítimas. É só dizer a palavra, sem medo de ser feliz.
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