... E disse o velho militante José Correia Leite
Revista Memória, ano V – nº 19, julho a dezembro e 1993, p.66/68.
Superintendência de Comunicação da Eletropaulo, editada pelo Departamento de Patrimônio Histórico.
A voz do Velho Leite
A resenha do depoimento do militante negro José Correia Leite a Cuti, que aqui fala da importância motivadora de uma literatura negra no país.
por Roseli Nascimento
A infância de José Correia Leite no romper deste século [XX] foi marcada pela loucura de sua mãe, como a Gavita de Cruz e Souza. Viveu na mescla étnica do Bixiga: negro, português e italiano, onde os negros viviam excluídos. A narrativa de ...E disse o velho militante José Correia Leite revela com a riqueza descritiva do velho Leite e com o empenho inteligente de Cuti as ruas, os casarões, os porões e todas as contradições e privilégios dos imigrantes europeus instalados no bairro – como invasores, já que o Bixiga é um dos últimos quilombos urbanos do Brasil – e a subcondição social do negro à margem do mercado de trabalho. Muita penúria. Muita adversidade.
O menino José Correia Leite trabalhou de entregador de marmitas, lenheiro, ajudante de carpintaria e outros subempregos que o impediria de estudar. O desejo de aprender a ler e a amizade com Jayme de Aguiar – irmão negro de família alforriada que teve acesso a colégio tradicional de São Paulo, por ironia, o Coração de Jesus – lhe abriram o mundo das letras, aguçando a sua consciência racional e a postura libertária que marcou sua vida.
Condição Humana
Inquieto desde os 20 e sintonizado com o esforço de resgate da história do negro no Brasil, o velho Leite percebera desde cedo que a historiografia oficial escamoteava a nossa essência, a nossa condição de ser humano. Em 1924 fundou O Clarim, que se tornou O Clarim d´Alvorada. Depois de muitas idas-e-vindas políticas viu o surgimento da Frente Negra Brasileira, o panafricanismo de Marcus Garvey, as Revoluções de 30 e 32, o Estado Novo, a ditadura de Vargas, os processos de industrialização e de urbanização de São Paulo. O velho Leite viu tudo, tudinho. A ponto que a sua vida, obra e graça está ligada (até hoje) a toda história do negro no Brasil, neste século [XX] cheio de contradições e abismos, como uma ponte de mão dupla entre o passado e o futuro.
Através de intelectuais, articulou sem compromisso e sem a submissão “natural” com Oswald de Andrade e Mário de Andrade, o negrérrimo Fernando Góis, Lino Guedes, Roger Bastide, Florestan Fernandes e as cabeças negras de Abdias Nascimento, Solano Trindade, Grande Otelo, Bororó, Vicente Ferreira e tantos outros. O passado do velho Leite teve ressonância nas novas gerações, como a minha. Mas nos anos 70, os Jacksons, James Brown, Martinho da Vila, Donna Summer, os bailes soul, o footing do Viaduto do Chá, Nelson Cabeleira. Até o dia 7/6/1978 foi o dia do basta, atletas negros foram discriminados racialmente no Clube Tietê e foi morto o negro Robson Luz em Itaquera. O delegado Righetti empreendia no centro histórico de São Paulo via a violência uma assepsia étnica prendendo e até assassinando negros, nordestinos, homossexuais e prostitutas. Escadarias do Municipal. A presença do Abdias Nascimento com o projeto do quilombismo dava cores negras à história contemporânea do Brasil, só revitalizadas no Domingo Negro de 1992 pró impeachment de Collor.
Nas lutas pela redemocratização do Brasil, onde pesa a omissão dos historiadores, nós, negros, estivemos presentes. Vivos como nossas cores. E o nome do velho Correia Leite corria de boca em boca. Lembro que nessa época o Grabriel Prioli Neto fez um documentário, “Da Senzala ao Soul”, no qual o velho, com sua sabedoria, mandava todos os negros de São Paulo estudarem ao invés de ficarem dançando. Foi um susto. Em 1987 o conheci na casa de Isidoro Telles, era os seus 87 anos. O Cuti e o Márcio Damásio o levaram e ele, simples, foi coberto de ternura. Em 1988, meu filho Abimbola, com um ano de idade, seguiu lado a lado com ele até o cemitério da Consolação para visitar o túmulo de Luiz Gama. Foi lindo. Os poetas negros de São Paulo leram o famoso poema “Bodarrada”, do filho de Luiza Mahim. E me lembrei, vendo-o ali impávido, do vídeo que Estevão Maya-Maya fez para TV Cultura em 1986, que concluía com uma frase do Velho, que resumia a certeza do dever cumprido, daquelas pessoas que fazem a história, sem terem certeza que a constroem. Tudo isso passou-me pela lembrança no anoitecer do dia 27 de fevereiro de 1989, que Cuti ligou para anunciar: “o meu griot morreu”.
Entrevista
Fonte Misteriosa de Juventude
Memória – Por que José Correia Leite?
Cuti – Sabedoria e disponibilidade foram os principais componentes que me atraíram para o Velho. Ao me aproximar, não senti barreira. Ele não colocou entre nós os cinqüenta anos que nos separavam. Então essa diferença não separou. Penso que o militante convicto tem consigo uma fonte misteriosa de juventude. Vontade de mudança. Está sempre disposto a contribuir, nem que seja apenas para fornecer munição às armas do sonho. O Correia Leite era assim: um guerreiro, um homem que fez de sua luta um ato de amor. E ressaltava de sua personalidade o respeito pelo outro. Certa vez, eu cheguei a sua casa e percebi uma senhora saindo com revistas religiosas nas mãos. Entrei e notei que ele havia adquirido algumas. Eu sabia de seu ateísmo pacífico, mas estranhei a aquisição. E perguntei-lhe: “– Leite, se você não acredita nem professa essa religião por que comprar a revista?” A resposta veio tranqüila: “– Eu admiro muito a militância deles. Saem de porta em porta. Tomam sol... Eu admiro. Eles são militantes mesmo!”. Eu estava diante de um humanista ferrenho. Em outros militantes do Movimento Negro do passado era comum você encontrar uma certa arrogância, um certo pedantismo de quem sabe e não se dispõe a partilhar. O Correia era o contrário. Talvez até por ser um artista, um pintor, e um autodidata, ele não embarcou nas vaidades do diploma. E também, creio, por não ter deixado a militância para cuidar da vida pessoal. Ele não criou distância entre essas dimensões de sua vida.
Memória – Qual a influência hoje do pensamento político do velho Leite para os negros brasileiros?
Cuti – Para responder a essa questão seria necessário uma análise sobre o que os negros brasileiros pensam. Somos muitos, mesmo na área restrita da produção intelectual. Por outro lado, poucos conviveram com José Correia Leite. Refiro-me aos militantes de hoje, ou aos tão-somente intelectuais. O respeito aos velhos, um traço marcante da herança africana no Brasil, infelizmente vai desaparecendo quando o indivíduo entra na escola. Eu vi (e vejo ainda hoje) muita gente que, sendo militante, não sabe absorver a experiência dos mais velhos. E estes, por sua vez, se desrespeitam também quando entram neste jogo da prepotência, batizado muito impropriamente de choque de gerações. Apesar de não ser possível uma reflexão pormenorizada sobre uma influência, penso que o fundador de O Clarim d´Alvorada deixou o exemplo de uma prática associada à produção de idéias. A sujeição do militante negro aos partidos políticos foi algo sempre criticado por ele. A necessidade de se construir entidades fortes, sem ficar “estendendo o chapéu” aos brancos, também era um ponto em que ele insistia. Por trás destas posturas, estava o seu valor maior: a dignidade. Sempre criticou o comportamento do “tira o pozinho do paletó do doutor”. Era contra a bajulação, o puxassaquismo, essas atitudes que degradam o oprimido. Fazia muita referência aos “negros sem espinha”. Suas idéias vinham de uma filosofia de vida erigida na luta e no sofrimento.
Memória – A cidade de São Paulo está bem presente como pano de fundo do livro. Fala de espaços que já não existem mais. Dá pra você falar um pouco do que o velho Leite comentava dos clubes e pontos de encontro dos negros na cidade.
Cuti – Quando ele fala do espaço urbano, é fácil perceber que era um grande apaixonado por São Paulo. Era um homem urbano. Nasceu e viveu na Paulicéia. Para ele os lugares de organização do seu povo, ainda que não fossem propriedade, eram de particular significação. Por isso agremiações como o Cosmos, a Frente Negra, o Clube Negro de Cultura Social, a Associação Cultural do Negro, são citados e comentados com atenção e esforço de memória. A rua Direita, já na época de sua juventude, constituía um ponto de encontro dos negros de São Paulo. E a reconstituição que ele faz, inclusive mostrando os conflitos advindos do racismo branco contra a presença coletiva dos afro-brasileiros no espaço urbano, nos fornece muito conteúdo para percebermos como a intolerância racial procede para demarcar a cidade.
Memória – A riqueza de detalhes da militância política do velho Leite e o processo de criação artística de Cuti, como se harmonizaram?
Cuti – Eu fui alertado para a história recente e sua importância motivadora de uma literatura negra brasileira. A educação que recebemos nos transforma em seres do passado. E tão-somente do passado escravo. É como se tivéssemos nascido no navio negreiro e morrido com o autógrafo da princesa. Daí tronco, senzala, chibata, quilombo, Zumbi ficarem sendo temas privilegiados da nossa produção. O contato com o Correia Leite me ajudou muito a ampliar meu repertório. Em seus textos publicados na imprensa e em nosso diálogo, que gerou o livro, eu me deparei constantemente com a sua inquietação do saber o “antes” e o “depois”. Ora, uma pessoa que chega na casa dos oitenta inquieta, lendo jornais todos os dias (sem óculos), livros, revistas e pintando aquarelas, atenta para as notícias de conteúdo racial, acaba entusiasmando seu interlocutor. Além disso, ele nos dava o privilégio de ler e comentar comigo os textos publicados nos Cadernos Negros, tanto os poemas quanto os contos. Aliás, chegou a fazer uma pequena introdução para o nº 2 da série. Outro sentido profundo de harmonia foi o exemplo de perseverança. O velho Leite teve ousadia no tempo. A arte, sobretudo a literatura, necessita desta ousadia. E as organizações militantes também. Talvez tenha sido decisivo o contato com o Leite para que eu tivesse perseverado a minha atuação no Quilombhoje, o grupo de escritores que publica os Cadernos Negros. Estamos convivendo há mais de dez anos e eu acho que temos muito ainda a fazer.
Memória – O que o velho militante falou para o novo militante e não consta no livro?
Cuti – Muita coisa é pra não dizer. Referências a pessoas que ele não pretendia magoar. Amigos, sabe... Ele não era um homem de difamar ninguém. Mas sabia certas intimidades de algumas pessoas. No mais falava de sua própria vida familiar, suas frustrações e desilusões enquanto militante, mas sobretudo dos livros que lera. Comentava também sobre a solidão pós-aposentadoria e afastamento da militância das entidades. Neste ponto, uma lição fundamental: a arte é a possibilidade mais viável de suportarmos a nossa solidão primitiva.