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Leite, José Correia; Cuti. ... E disse o velho militante José Correia Leite. São Paulo: Secretaria Municipal de Cultura, 1992. 301 p.

Apresentação, p.9

Ivair Augusto Alves dos Santos*



No início do ano de 1992, em reunião da Coordenadoria Especial do Negro – CONE, quando estive presente em conjunto com Hédio Silva Jr. e Arnaldo Xavier, ficou estabelecido como prioridade a publicação deste livro, que foi efetivado por meio da receptividade e determinação da Sra. Marilena Chauí, Secretária de Cultura do Município de São Paulo.

Este trabalho, sem sombra de dúvida, deverá ser leitura obrigatória a todos que militam no Movimento Negro, pois o mesmo é repleto de ações de milhares de figuras anônimas, sem a persistência dos quais seria impossível a nossa existência, o avanço contínuo das idéias e das ações coletivas.

Alguns militantes tiveram o privilégio de conviver com pessoas como o Sr. Correia Leite, Jayme de Aguiar (falecidos), Henrique Cunha, Aristides Barbosa e outros de uma geração que foi fundamental para este processo de politização.

A fala do Sr. Correia Leite reproduz longas conversas que nós militantes mantínhamos sobre o passado recente. Com generosidade e desprendimento ele se colocava diante da juventude que o procurava. Sua paciência e experiência de vida garantiam seus comentários, feitos com tal leveza e simplicidade, que suas críticas se tornavam uma lição.

Neste século [XX], o trabalho de entidades do Movimento Negro e de indivíduos, que deram uma real contribuição pela valorização do negro e na luta contra o racismo, ainda está por ser escrito. Como exemplo disso posso citar algumas pessoas como: Odacir de Matos, Eduardo de Oliveira e Oliveira, Jayme de Aguiar, Dalmo Ferreira, Solano Trindade, Nair Araújo, Tia Vanda, Domingos Pelegrini, Padre Laurindo Batista, Márcio Damázio, Wanderlei José Maria e tantos outros.

Há muito para ser escrito e ser publicado, mas como romper as barreiras?

A história da publicação deste livro tem mais de cinco anos até que houvesse uma determinação política de uma administração democrática. Isto quer dizer que a Coordenadoria Especial do Negro e a Secretaria Municipal de Cultura fizeram prevalecer a idéia da cidadania cultural em São Paulo.

Sentimo-nos orgulhosos em ter participado da publicação do livro “... E disse o Velho Militante José Correia Leite”, pois o mesmo servirá, de uma forma viva, para o resgate da memória da luta do Movimento Negro nacional.

É preciso caminhar no sentido de que essa história tenha a visibilidade que ela merece.

A história do que foi realizado neste século [XX], pela militância, precisa ser recuperada em cada instante de ousadia e de criatividade.

*Coordenadoria Especial do Negro





AO-PÉ-DO-FOGO, p.11 a 14

“Sua palavra, seus conselhos, suas idéias, suas observações, valeram-me pela escola que não tive.

... Nem sempre, é verdade, foi compreendido, e muitas vezes encontrou pela frente aventureiros que lhe quiseram dificultar a ação nobilitante. Passaram, porém, esses aventureiros, passaram e José Correia Leite ficou.

... Um chefe que não dá ordens, mas que aconselha, que persuade, que convence, por que sua vida limpa e reta é a maior autoridade de que ele se vale”.

Fernando Góis

(“Amigo e Mestre” – Diário da Noite – 23.agosto.1960)

Por volta de 1976, vindo de Santos, tive um contato mais estreito com grupos e associações afro-brasileiras da cidade de São Paulo e também do interior do Estado. Aos poucos foi-se-me desabrochando diante dos olhos um passado recente, rico em lutas e esperanças urbanas do meu povo. Personagens diversos passaram-me a habitar a imaginação. Dentre as personalidades, militantes de outros tempos, algumas foi possível ver, ouvir e admirar.

Este contato trouxe à minha geração o influxo necessário para sentirmos que não estávamos iniciando um trabalho de conscientização, mas continuando o esforço daqueles que nos tinham antecedido.

Logo, portanto, percebi a lacuna, existente entre as gerações, começando a ser superada. A oralidade e a descoberta de certas publicações esgotadas iam estabelecendo o liame. A primeira forma, muito citada para caracterizar a nossa tradição cultural, serviu (e ainda serve) como subsídio para teses acadêmicas e outros fins. O Movimento Negro vem sendo submetido a várias leituras teóricas, feitas em geral por brancos, que vão fixando balizas para o pensamento. Os tais “estudos” arrastam, em sua maioria, o vício de reforçar a noção de “outro”, “corpo estranho”, “alienígena”, com que somos estigmatizados. Nós negros somos tomados como “objetos de estudo”. Alguém já viu algum estudo sobre o “branco no Brasil”? Fora Guerreiro Ramos, não tenho notícia.

Além dos estudos (ensaios, teses etc.) contamos com os raros testemunhos escritos por militantes comprometidos com a luta anti-racista, dentre os quais, aqueles elaborados por Abdias do Nascimento e Eduardo de Oliveira são os melhores exemplos. Nestes trabalhos o sujeito não está distanciado do seu tema. Ele é o tema. Não usa o chamado “afastamento crítico” para camuflar suas reais intenções e opiniões, como fizeram muitos “cientistas” para provar absurdos racistas que, em face das inúmeras reedições de suas obras, continuarão a desvirtuar a compreensão profunda da questão racial no Brasil.

Na mesma linha dos testemunhos escritos, muitos depoimentos foram povoar fitas magnéticas, ora para se tornarem pedaços de matéria jornalística ou tese, ora para satisfazerem o simples desejo de se realizar um “trabalho”, que pára mesmo antes da primeira transcrição do conteúdo gravado.

Quando principiei a gravação dos depoimentos de José Correia Leite, em 1983, eu estava movido por um sentimento catalisador de algumas opiniões de amigos e companheiros, que discutiam muito a necessidade de preservarmos a nossa memória. Várias vezes eu tinha ido à casa do Velho Leite para conversar. A sua memória prodigiosa serviu a muitas pessoas que nele foram buscar informações acerca da Imprensa Negra Paulista. Era um dos mais velhos em idade e com uma história, de dedicação a jornais e associações negras, conhecida por muitos. Desde estudiosos renomados – brasileiros e brasilianistas – até, como já disse, simples curiosos, Correia Leite sempre recebeu a todos, muitas vezes com um certo esforço físico, pois que a sua idade apresentava exigências de horários para refeição, medicação, repouso etc. Já nas primeiras conversas que tive com ele, passei a admirá-lo. Ao falar de sua luta nos jornais e entidades, bem como ao comentar a realidade contemporânea, fazia-o transmitindo-me um profundo sentimento de verdade, misto de paixão e idealismo. Mas uma de suas características que mais admirei foi a generosidade. Lamento que algumas pessoas tenham confundido esse traço (tão raro) de personalidade com ingenuidade e, num flagrante desrespeito, apossaram-se de materiais valiosos (jornais, revistas, textos, livros etc.) para não mais devolver-lhe. Aliás, esses fatos sempre o aborreceram muito.

Minha consideração levara-me a solicitar-lhe a apresentação para o livro Cadernos Negros 2 – Contos (1979) – série anual em que participo da organização com meus companheiros de Quilombhoje. Depois de relutar um pouco, pelo motivo de não ser especialista na área da literatura, acedeu a meu pedido e fez um texto. Nossa amizade se tornou mais firme e amadureceu-me a idéia de recolher o depoimento sobre o seu passado de militante. A princípio fui levado pelo ímpeto acadêmico de fazer um estudo. Eu era universitário na época e começava a tomar consciência das facilidades de se estar ligado a uma instituição. Essa idéia, porém, logo feneceu. Percebi o descomprometimento que teria de ter, a nível de linguagem, com a luta travada no cotidiano. Aliás, o discurso em “sociologuês” sempre dificultou a mobilização da Comunidade Negra. Muitos militantes sabem disso. Mas, não foi esse apenas o motivo que me alertou no sentido de não fazer um livro “sobre” e sim um livro “de” José Correia Leite. Eu tinha percebido, inúmeras vezes, trechos inteiros do que ele dizia numa simples conversa transpostos para páginas impressas. Uns com aspas, outros não. Mas, trechos! Senti que alguém como José Correia Leite, tendo escrito tanto na Imprensa Negra e lutado para elevação de seu povo, deveria ter o seu discurso registrado num trânsito livre como flui a conversa. Liguei o gravador e comecei a fazer perguntas. Não eram necessárias muitas. Eu estava diante de uma pessoa interessada em contar o que se passou, comprometida com a sua função de depositária de um conhecimento prático, vivido, mas também fundamentado em leituras contínuas e variadas. Além da sensibilidade artística, que teve seu ponto de fruição na pintura da aquarela, José Correia Leite era um amante dos livros.

Naquele mesmo ano do início das gravações, fiz uma curso de História oral, na Biblioteca Mário de Andrade, que mais me incentivou para enfrentar as dificuldades que foram surgindo e que não cabe aqui relatar. Senti o privilégio de ouvir lances do passado que certamente poucos teriam acesso. Meu desejo maior foi dividir esse conhecimento. Afinal, as coleções de jornais, como as do “O Clarim da Alvorada”, “O Getulino”, “A Voz da Raça”, “O Novo Horizonte” e outras tornaram-se verdadeiras raridades. Essa produção já conta com uma seqüência de estudos sistemáticos.

O leitor tem em mãos o que o Velho Militante José Correia Leite me relatou nesta longa “conversa-ao-pé-do-fogo”, de março de 1983 a fevereiro de 1984. As alterações na transcrição original, que redundaram em duas outras redações, foram feitas no intuído de tirar do texto repetições (muito próprias do movimento cíclico da memória), colocar, de forma não rígida, os fatos numa certa cronologia e, sobretudo, possibilitar a participação efetiva do autor dos depoimentos, em revisão linha por linha, até esta redação final. Nesta última etapa, houve acréscimos e subtrações solicitadas pelo depoente. Esforcei-me para manter o tom de conversa, embora tenha retirado do texto as minhas perguntas, para que o “ping-pong” não desse um caráter de bate-papo particular. Limitei-as ao final dos depoimentos, quando o teor das mesmas caracteriza o contraponto entre nós dois.

A fim de que este trabalho tivesse uma maior amplitude, acrescentei um conjunto de fotos, manchetes de jornais e capas de revistas, uma seleção de artigos publicados pelo Sr. Leite na imprensa (nem sempre assinados), além de “O Alvorecer de uma Ideologia”, conforme o autor, um texto inacabado, que introduziria uma obra que pretendeu realizar. Entre os depoimento, os artigos e o “Alvorecer...” algumas passagens são reapresentadas. Preferi assim para não ter de mutilar qualquer das partes. Afinal, nossa história já foi por demais mutilada.

O material utilizado para ilustração deste livro pertence ao acervo do depoente.

As lições de vida, que tive com este homem admirável e simples, valeram-me o esforço necessário para a organização deste livro, com o qual espero ter contribuído para reatarmos um pouco mais o fio da história do Movimento Negro. O falecimento do depoente, em 27 de fevereiro de 1989, foi uma grande perda. Sua luz, no entanto, sempre apontou para mim o sentido da perseverança. José Correia Leite foi um autêntico “griot” dos novos tempos e um militante da dignidade humana.

Cuti

São Paulo, 21 de junho de 1992.



ENTREVISTA, p.207 a 216

CUTI – Você acha que, no decorrer da sua luta, e mesmo depois que você se “aposentou” da militância, o negro brasileiro sofre muita influência do negro norte-americano?

J.C.L. – Influência não. Influência propriamente dita, não. No passado nós fizemos muitos esforços para entrar em contato com o negro norte-americano, porque sabíamos que eles estavam em posição de nos ajudar, não só com seus exemplos, mas também com aquele calor racial de que a gente tinha conhecimento. Em matéria de negro, entre os americanos e nós, existe uma espécie de ética. Enquanto lá negros e mestiços, por mais claros que sejam, têm de usar o apêndice negro, isso não acontece aqui no Brasil, onde a maioria dos homens importantes, em toda disciplina, são mestiços. Exemplo, nunca ninguém ouviu dizer: “o grande romancista negro Machado de Assis” e assim por diante.

CUTI – Vocês achavam que ia dar bom resultado apresentar negros norte-americanos importantes num jornal de negros daqui?

J.C.L. – Lógico que ia. Um negro como o Book Washington, que fez universidade e tudo, é um exemplo muito grande, apesar de a gente saber do auxílio de branco. Nos Estados Unidos, por exemplo os judeus quando viam que se tratava de um projeto humanitário não se recusavam a dar apoio. Mas o Book Washington criou universidade e isso é de grande valor. O Marcus Garvey foi também outra grande figura de exemplo, apesar de ser político. Com o lema “A África para os africanos”, ele queria criar orgulho racial nos negros disseminados pelo mundo. E nós tínhamos de aceitar isso também como coisa importante e não esse falso sentimentalismo, essa coisa piegas do brasileiro branco de dizer: – “Mamei do leite da negra...” Tudo coisas sentimentais, mas na prática o branco nunca levou a sério qualquer Movimento Negro, no sentido de ajudá-lo a concretizar idéias. O branco nunca levou a sério. E sempre que via o negro com idéias de organização, logo achava que era espertalhão. O próprio negro ficou com essa mania de ver um outro que fosse idealista como espertalhão. Custava acreditar na sinceridade. Eu, só depois de velho é que começaram a acreditar que eu não estava fazendo a luta em troca de qualquer coisa lucrativa. Outra coisa de importância do negro americano, após a Primeira Guerra Mundial, foi o surgimento da música negra, o jazz. Aí o negro foi visto no mundo todo como um dos injustiçados na América do Norte. Só que aqui aceitaram o mestiço de uma maneira diferente do branco norte-americano. O norte-americano não o aceitou como branco.

CUTI – Depois de 1965, como ficou o seu contato com os militantes mais novos do Movimento Negro, do Jornegro, dessas iniciativas mais recentes?

J.C.L. – Só notícias. Algumas vezes fui assistir a lançamentos de livros ou a alguma reunião. Só isso. Mas participar mesmo não participei. O meu convívio foi com os passos do meu passado que atraíam os elementos das gerações mais novas para conversar comigo, para saber de coisas. Mas não tive mais nenhum interesse nem força – devido à idade – para voltar a uma luta. Eu teria que me esforçar muito porque ia divergir de muitas idéias dos jovens e isso ia me aborrecer e eu ia aborrecer os outros. Não ficava bem voltar. Depois da Associação Cultural do Negro, os movimentos que eu tive conhecimento foram alguns feitos no Clube Coimbra, antes de fundarem o CECAN. Lá no Coimbra houve muitas manifestações que não eram propriamente do clube, mas resultado da concentração de jovens que faziam programações culturais e muito baile, o que é natural. Depois surgiu a idéia de se fundar um jornal. Apareceu um jornal mimeografado chamado Árvore das Palavras. Eu só recebia. Nunca me procuraram, a não ser os Cadernos Negros em que fiz o prefácio do número dois, de contos. Surgiu depois o Jornegro. Tive conhecimento também da entidade da Dra. Iracema. Eu nunca fui lá. Não fui convidado e não vou de alegre num lugar que não sei se vou ser bem recebido. Ela procura fazer uma entidade meia esnobe, meia aburguesada... Havia uma entidade na Bela Cintra, a ACACAB. Essa, por sinal, já me convidou, mas nunca tive oportunidade de ir. Eu sei que eles ensinavam capoeira, línguas... E tem uma outra que eu nunca participei dela porque surgiu na época da Associação Cultural do Negro e eu a considerei uma sociedade rival, uma sociedade que prejudicou a Associação, que foi a Casa da Cultura Afro-Brasileira. Conheço ainda o Clube Aristocrata em que nunca fui. É uma entidade que já o nome me afasta. Nunca fui, apesar de conhecer alguns fundadores.

CUTI – Como você viu o ressurgimento da imprensa negra a partir do Árvore das Palavras até hoje?

J.C.L. – Eu não tenho bem certeza, mas eu creio que há dificuldade econômica. E são muito poucos os jovens capazes de enfrentar os problemas de sacrifício que exige esse trabalho de montar jornal. Principalmente aquele que for mais sincero nas idéias vai ficar sobrecarregado, vai ficar carregando nas costas todo o prejuízo que houver. E outra coisa, eu penso que não é fácil dar característica a um jornal de negros. Sempre se encontra pessoas que vão distorcer para tratar de outros assuntos sem interesse. Do Movimento Negro Unificado eu já soube até de envolvimento com a causa para libertação da Palestina e outras coisas. É uma coisa que não interessa. Não há interesse porque o negro não tem meios para defender a causa de um povo que não é tão pobre assim. Reconheço ter o Movimento Negro Unificado conseguido ultrapassar as fronteiras dos estados.

CUTI – Você acha que a dificuldade de se fazer hoje um movimento e caracterizá-lo como movimento de negros é maior que na época de sua atividade na imprensa negra? E por que seria?

J.C.L. – Não, não é maior, porque tudo é relativo. Mas é um grupo minoritário que se preocupa, não o negro como um todo. A única dificuldade que eu vejo é que não se pode dizer que exista uma comunidade unida, devido ao crescimento da cidade, o progresso, o desenvolvimento. O negro se espraiou muito. Então é muito difícil fazer uma luta assim. Na minha época, neste sentido, era fácil. O negro se concentrava todo num ponto. Então esse é a razão da facilidade de jornais e muita coisa. Já hoje se torna mais difícil por causa da distância. Uma entidade que surja tem que se descentralizar, fazer várias sedes para contornar toda essa periferia que é onde o negro está, devido a toda sua situação econômica, porque como classe mais sofrida ele tem que morar mais longe e não pode mais se concentrar nos bairros mais próximos do centro da cidade, onde havia os bairros com grande densidade negra. Outra coisa que eu vejo, e não é correta, é a especulação política de meia dúzia de negros que querem enganar os outros com uma história de conquistar espaço na política. E assim que se vêem eleitos não vão tratar de coisa nenhuma. Eu sei, por exemplo, de um deles. Foi eleito com grande participação do eleitorado negro, mas não afirmava isso. Dizia que foi eleito pelo povo. Na eleição de 1982 não contou com o apoio do negro, e eu acho que muito justamente. Não foi eleito, porque não se preocupou em fazer alguma coisa para a coletividade negra mais necessitada. Não custa nada fazer um movimento de bolsa de estudo, com interesse de auxiliar os negros que têm vontade de estudar e não têm possibilidade e então caem numa marginalidade. Muito negro cai na marginalidade porque a família não tem condições de educar e ele, sozinho, não consegue. Então cai pro lado mais fácil. É mais fácil descer do que subir.
CUTI – Pelas informações que você tem, o que acha do Movimento Negro no Brasil de hoje?
J.C.L. – Eu acho que é uma correria atrás da política. Infelizmente a influência política é muito grande no espírito dos negros. Isso não é preciso eu dizer. Você mesmo deve estar observando. O negro, agora com essa abertura que está havendo, com o surgimento de novos partidos, está disperso em grupos partidários. Quando o sentido de uma luta específica do negro não pode ter isso. Não pode ter negro – PTB, negro – PT ... O negro é um. Ele tem que ser um indivisível. Ele pode ter, como brasileiro, suas idéias políticas. Mas ideologicamente, no sentido de um movimento de levantamento da condição social, econômica e cultural ele não pode estar dividido em bandeiras políticas. Ele tem que ter uma bandeira, que é a bandeira de luta dele. Isso o negro não está fazendo.
CUTI – Mas, você é contra o negro participar dos partidos políticos?
J.C.L. – Não. Eu sou contra se dividir politicamente. Agora, as pessoas podem participar de partido político, mas não dizendo que com isso vão resolver o problema do negro, quando estão divididos dentro da ideologia de um partido do branco. Pelo que eu soube, o único que deu oportunidade de haver uma reivindicação mínima do negro no programa de seu partido foi o Brizola. Mas isso é por interesse político, não por sinceridade.
CUTI – E qual sua opinião a respeito das atividades que têm acontecido em outras áreas como a música, a movimentação dos blocos afros, todas as coisas que estão acontecendo além da política?
J.C.L. – Eu acho isso muito importante. Mas, muito negro fica pretendendo apresentar um tipo de cultura negra ... Eu lamento quando a gente vai verificar e tem um branco orientando, um branco ajudando.
CUTI – Você não acha que o fato cultural vai além da pele do indivíduo? Você não acha que um branco pode ser um bom sambista ou entender muito de candomblé?
J.C.L. – Pode. E é o que está acontecendo. Eu vi ontem na TV Manchete um programa chamado “Esquentando os Tamborins”. Tem uma escola de samba no Rio de Janeiro, chamada Unidos da Tijuca, com um enredo sobre um grupo de negros que eu nunca ouvi falar. Eu sei dos malês, mas não ouvi falar desse outro grupo que também era alfabetizado. Nunca se sujeitaram a ser escravos. Logo que chegaram aqui, não demorou muito tempo, todos eles passaram a ser negros-de-ganho, porque eles sabiam mais que os próprios senhores. Eu fiquei admirado de ver todas essas informações. E quem estava falando desse assunto completamente desconhecido de nós era um branco, não um negro.
CUTI – Você é contra a participação dos brancos dentro das entidades negras?
J.C.L. – Não. Eu não sou contra porque não há uma luta de separação. A luta é mais de integração. Porque, quando um negro grita contra uma discriminação, o que ele está gritando? Está gritando que aquele branco não está tratando ele em pé de igualdade. O negro está querendo um espaço de igualdade social. De modo que se o branco vem, a gente sempre tem que ter cuidado, porque ele vem sempre atrás de qualquer coisa. Então o negro não pode continuar sendo escada pra ninguém subir. É preciso que esse branco vá com sinceridade, com espírito fraterno, com idéias de igual, e dê a colaboração que o negro precisa, sem paternalismo ou querer ser mais do que os outros porque é branco. Tem que trabalhar de igual para igual. E mesmo que ele tenha condições de dar qualquer coisa, principalmente financeiramente, tem de dar sem pensar que está fazendo favor, e sim como quem está cumprindo um dever.
CUTI – Na sua época você tinha um sonho de integração do negro, de união da raça em prol de um levantamento social. Você acha que hoje teve continuidade essa sua militância em outras pessoas? Houve progresso de entidades e grupos nesse sentido?
J.C.L. – Não... O grupo que tinha essas idéias, sinceramente, era muito pequeno. E acabou ficando eu como um dos remanescentes. Eu disse da atração do negro pela política. A Frente Negra foi isso. Aceitaram todas aquelas idéias dos Veiga dos Santos, não combateram muitos erros porque estavam esperando resultados imediatos, enquanto essa luta seria para gerações. A esperança era a política. Mas política no Brasil é sinônimo de favor. Na política você consegue emprego, você consegue prestígio, você consegue uma porção de coisas. Essa é a atração que o negro sente. Ele vê na política isso. Mas se vê pessoalmente, e acaba sendo um sujeito desigual para os seus irmãos. Embora às vezes estejam agrupados, todo mundo está procurando cada um pra si, dentro da política. E hoje mesmo se vê isso. Eu ainda não conheci uma entidade com finalidade de um idealismo puro, sério. Pode existir uma entidade capaz de agregar um grupo de negros para se divertir, tipo Aristocrata.
CUTI – Diante e tudo que você passou na vida, qual o futuro que você vê em termos da questão racial no Brasil?
J.C.L. – É uma coisa imprevisível. Isso é um assunto para se refletir. Eu me lembro da observação daquela socióloga negra americana, Irene Diggs, que disse: “Enquanto o problema racial nos Estados Unidos tende a diminuir, aqui no Brasil é o contrário. A previsão é de aumentar”. Diante disso, acho que vai levar muitos anos para que o negro resolva o seu problema, que deixou de ser um problema-negro-brasileiro para ser um problema do “negro”. Vai acabar sendo um problema de cada negro. E já está acontecendo isso, quando deveria ser uma luta de unificação para que o negro não continue vivendo sem uma retaguarda.
CUTI – Você não acredita na fraternidade de negro para negro?
J.C.L. – Toda minha vida foi em torno disso. O dia que se alcançar que somos todos irmãos, estamos alcançando os objetivos desse nosso ideal.
CUTI – A afirmação da socióloga americana, você acha uma afirmação correta?
J.C.L. – Ela disse isso nos anos quarenta. Acho que isso já está acontecendo. O negro americano está ganhando mais espaço através de uma luta por seus direitos civis que foi conhecida no mundo todo. Contudo, o negro americano já não tem aquele orgulho de ter alcançado por si mesmo o progresso como a música negra surgida no Harlem (chamado até de Capital Negra da América), os jornais e até mesmo bancos. Mas o seu orgulho de americano estava acima do ser negro. Assim, o negro os poucos está chegando na sua integração. O próprio professor norte-americano, Michael Mitchell, me disse que nos Estados Unidos já se está com a mesma idéia do Brasil: “Aqui no Brasil não tem nada. Aqui tá tudo bem ... Ninguém sofre nada ... Essa conversa de discriminação, preconceito, é bobagem ... Eu nunca senti nada ...” Ele me disse que o negro americano está se expressando com essa mesma linguagem.
CUTI – No momento que o negro se integra melhor com o branco, em posição de igualdade, você acha que mesmo assim ele deve continuar realizando o seu trabalho de negro, de comunidade?
J.C.L. – Deve. Lógico que deve! Ele tem obrigação. Porque a origem do negro é escrava, e os de origem escravocrata estão desaparecendo, e estão aí os descendentes das correntes imigratórias. Seus antepassados não tiveram escravos e, portanto, não são obrigados a reconhecer no negro a sua descendência escrava e os seus direitos que foram postergados.
CUTI – Um dia o branco vai esquecer a origem do negro?
J.C.L. – Eu ouvi dizer que, por exemplo, um século na história é um minuto. Então, historicamente está aí presente que o negro é descendente de escravo. E tão cedo isso não vai ser esquecido. Então o negro tem que lutar para ser ressarcido.
CUTI – Na questão, muito debatida, sobre o casamento interracial, qual é a sua opinião a respeito, em termos de um progresso social do negro?
J.C.L. – Eu sou de opinião que o negro tem de continuar formando sua família no meio negro. No entanto, eu admito o que acontece, de alguns negros bem sucedidos irem procurar sua parceira de outra origem (o mesmo caso pode acontecer com uma mulher) alegando a sua condição de não encontrar no meio da sua gente uma companheira à altura.
CUTI – E o que você acha disso?
J.C.L. – Penso o que já disse. Contudo ele (ou ela) deveria fazer todos esforços para continuar a sobrevivência do povo negro.
CUTI – A respeito da volta às origens, no sentido de recuperação de valores, como é o caso do pente afro, roupa estilo africano, colares, muito na linha de certos objetivos da Negritude, da recuperação de valores, qual é a sua opinião?
J.C.L. – Eu acho uma fantasia. Os negros estão vendo a África hoje, mas não estão vendo os seus antepassados, não estão lembrando seus avós, suas bisavós. Eu admito que todos nós temos de ter orgulho daquela nossa quantidade de sangue africano. Não podemos renegar isso. Essa é a origem que entendo. É o orgulho da porcentagem de sangue africano que eu recebi. Eu tenho metade. Mas acontece que seu eu tiver de falar em volta às origens, eu vou pensar na senzala, no eito, na chibata e em uma porção de coisas até chegar na origem do meu bisavô (da parte de minha mãe), da minha bisavó. Eu creio que minha avó foi africana . Ela é a origem africana que eu tenho. O resto já abrasileirou tudo. Eu tenho compromisso com este país. São quatro séculos. É muita coisa pra ser esquecida, pra eu lembrar de um continente que se eu for lá serei tratado como estrangeiro. Eles também têm orgulho das suas tradições. Eu não posso chegar lá como um membro da casa. Eu posso chegar como um parente por causa da minha cor, por eu estar estigmatizado por ela. O próprio livro Raízes mostrou a luta do sujeito para descobrir a origem da família, não da África, da família dele, os avós... Aqui mesmo tem a história do Chico Rei. Ele foi mesmo rei. Foi vendido porque teve uma derrota e veio com todo o séqüito para a mineração. Lá ele demonstrou a capacidade. Trabalhou, se alforriou, trabalhou para alforriar os membros do séqüito...
CUTI – Na época d’O Clarim d’Alvorada a gente observa que nos jornais e revistas havia uma propagandização de alisantes de cabelo. Me parece que na época os homens também alisavam. Gostaria de ouvir a sua opinião a respeito.
J.C.L. – É outra fantasia do negro. É, como dizia o Vicente Ferreira, uma espécie de alegoria. Eu não sei se eles tinham vergonha da carapinha, mas faziam aquilo porque achavam bonito. Quando, num filme, apareceu a orquestra do Duke Ellington, ele e os músicos com umas casacas até o joelho, calça bem apertadinha, sapato de bico... Ah, não demorou muito tempo muitos negros passaram a usar aquela mesma roupa. Além disso, procuravam imitar as modas inventadas pelos brancos. Só que davam um jeito de aderir a essas modas de acordo com suas condições econômicas. Até nas danças o negro procurava descobrir o que estava em voga. É que essas coisas são muito do negro. É uma manifestação alegórica. Por exemplo, o sujeito que descobriu o pente de alisar o cabelo era um alemão. Eu conheci até. Ele entrou em contato com O Clarim d’Alvorada. Por ser um jornal de negro, ele procurou fazer um anúncio do seu pente. Antes disso os cabelos eram alisados com tampa de espiriteira ou outros acessórios. Até que começaram a aparecer os inventos norte-americanos. Alisar o cabelo foi uma imitação dos negros norte-americanos. Lá havia uma preocupação muito grande de alisar cabelo, branquear. Os americanos descobriram uma pasta que acabou com o uso do ferro. Depois, com a luta pelos direitos civis, acabou a idéia de alisamento de cabelo e apareceram os black-power’s, um movimento muito importante porque o negro passou a usar o seu cabelo próprio. No Brasil começaram a imitar sem saber o significado daquele tipo de cabelo. Era a marca de uma revolta, de um sentido do Poder Negro. Então o negro que usava o cabelo “black-power” estava mostrando pertencer a um grupo contrário às idéias pacíficas de Luther King. Eu me lembro quando o Michael veio aqui, com o cabelão dele “black-power”. Ele encontrou um rapaz aqui de cima – o Paulo – e fez um sinal de punho fechado. O Paulo depois me disse: “Pois é, o moço fez assim pra mim... Ele queria falar comigo?” Eu respondi: “Ele viu você com o cabelo “black-power” e pensou que você fosse um negro consciente, revoltoso, capaz de lutar pela sua gente. Você usa isso sem saber por quê. Quando ele fez aquele sinal, imaginou que você fosse um companheiro de luta”.
CUTI – Leite, você teria mais coisa importante pra gente acrescentar aos depoimentos?
J.C.L. – Só dizer que eu nunca esperei essa coisa de grito contra o racismo no Brasil, como está tendo agora. Eu me lembro que a própria rainha do carnaval dizia: “É uma barra! É uma barra! Eu vou lutar. Eu quero ser uma atriz. Eu sei que é uma barra. Mas é o racismo...” Até os brancos também já estão falando contra o racismo. De modo que eu nunca esperei que hoje o negro tivesse essa consciência tão grande de que existe o racismo. Outro dia a Zezé Motta, Elizeth Cardoso e outras artistas falavam sobre o assunto. A Elizeth disse: “Eu nunca senti nada”. A Ângela Maria também: “Eu nunca senti nada, mas eu sei que existe. E como existe!” Elas nunca sentiram, mas sabem que existe. Já está muito bom. A Zezé Motta está organizando uma entidade para lutar contra o racismo. Aquelas palavras da Irene Diggs parece de que estavam corretas. Embora seja um racismo invisível, ele está aí, e tem gente pronta para lutar contra. É preciso, no entanto, que o negro não exagere e chegue a ver racismo em toda atitude do branco. É só o que eu tinha a acrescentar. Eu já estou cansado de puxar as minhas lembranças. Essas recordações são um fragmento de uma história subterrânea, ou como disse o poeta Carlos de Assumpção, é uma história do “porão da sociedade”. Mas ela mostra que o negro, ou uma minoria, depois de 1888, não ficou omisso à luta para resolver os problemas do grave erro da lei chamada “Áurea”. Tudo o que se pretendeu fazer estava em torno de corrigir os erros da lei de 1888. Esse é o espírito desta narrativa. É possível que ainda outros venham acrescentar subsídios mais valiosos a estas despretensiosas recordações, para mim muito comoventes. E, parafraseando o poeta: “É uma história de vida comovida”.
24.2.84.

Lançamento

Escritor

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